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Trabalho Escravo Contemporâneo

Atualizado: 1 de fev.


Imagem ilustrativa do post (corrente de aço)

O trabalho escravo contemporâneo tem sua raiz histórica na escravidão, que esteve presente na sociedade desde a antiguidade, como na Grécia Clássica e no Antigo Império Romano Ocidental, a qual havia o sistema de escravidão branca de camponeses endividados, prisioneiros de guerra ou estrangeiros trazidos para submissão de trabalho forçado.[1]


No Brasil a escravidão foi iniciada pela colonização portuguesa utilizando a mão de obra indígena, porém esses povos foram se extinguindo devido às doenças trazidas pelos europeus, como varíola, rubéola e tifo, e também como eles eram resistentes a esse tipo de trabalho, muitas vezes fugindo, acabavam sendo executados. Por isso, passou se a explorar a mão de obra do escravo negro trazido da África, que possuía maior resistência física e adaptação ao trabalho.[2]


A escravidão só foi abolida com a Lei Áurea de 1888, após várias legislações que a antecederam, como a Lei Feijó de 1831, que proibia a importação de escravos ao Brasil; a Lei Eusébio de Queiroz de 1850 que de fato conseguiu frear o tráfico de escravos; a Lei do Ventre Livre de 1871, que dava liberdade aos filhos de escravas que nascessem a partir daquela data; a Lei dos Sexagenários de 1885 que libertava os escravos a partir dos 60 anos de idade.


A abolição desse sistema ocorreu devido o contexto social e histórico da época, após a Revolução Industrial, com a influência do Império Britânico pressionando as colônias, inclusive a marinha inglesa afundava os navios negreiros no oceano Atlântico. Para os ingleses era um benefício o fim da escravidão e a implantação do trabalho assalariado, garantindo um mercado de consumo aos seus mais novos produtos industrializados.[3]


A ‘escravidão’ contemporânea se processa de maneira adaptada à globalização, por isso, já é pacificado o termo trabalho escravo como sendo trabalho análogo ao de escravo. Inclusive está disciplinado no artigo 149 do Código Penal, havendo quatro formas de sua executoriedade.


O trabalho escravo na atualidade se alia às forças econômicas e sociais das organizações nacionais ou multinacionais, transformando em uma problemática social e política que agride os direitos do ser humano, como a cidadania. Essa questão se torna desafiadora e complexa quando analisado seu processo histórico de acordo com as mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais da sociedade.[4]


O conceito de trabalho análogo ao de escravo sofreu um desenvolvimento interpretativo no decorrer dos anos e o mais aceito na doutrina e pelo Supremo Tribunal Federal (STF) é o desenvolvido por José Cláudio de Brito Filho, “que considera o trabalho escravo contemporâneo como sendo uma antítese do trabalho decente, e, portanto, daquele que é prestado de forma digna”.[5]


De acordo com o Código Penal, as quatro formas de trabalho escravo são:  1. Trabalho Forçado ou Obrigatório; 2. Jornada Exaustiva; 3. Condição Degradante e; 4. Servidão por Dívida.


O Trabalho Forçado ou Obrigatório de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) “designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade”.


A Jornada Exaustiva, de modo geral, é a atividade que excede ao limite razoável legal, configurando a precarização da condição humana de trabalho.[6] Ressalta-se que essa modalidade não está adstrita ao fator horas, logo, verifica-se quando o empregador e/ou preposto exige do empregado a prestação de uma atividade que vai além das forças de trabalho, comprometendo sua saúde física e mental.[7] 


A Condição Degradante configura com a humilhação feita ao trabalhador pelo empregador e/ou preposto pode ser de diversas formas, por exemplo: inexistência de água potável e alojamento adequado, falta de instalação sanitária apropriada, falta de cozinha para preparo e consumo de alimentação, dentre outras maneiras negatórias de direitos básicos do trabalhador.[8] 


Por último, a Servidão por Dívida configura quando o empregado é impedido de abandonar o trabalho em decorrência de dívidas contraídas com o próprio empregador. Nesses casos, geralmente, a vítima é seduzida com promessas de vantagens econômicas e, quando iniciado o trabalho contrai dívidas, pois é obrigada a adquirir do próprio empregador alimentos, vestimentas, ferramentas, remédios, entre outros. Assim, o trabalhador acaba utilizando os valores que deveria receber como pagamento para tentar quitar seu débito, ficando em situação de submissão, impedido de abandonar o posto de trabalho até o pagamento das despesas.[9]


O motivo propulsor de ainda existir essa violação desumana é que o trabalho escravo contemporâneo constitui a segunda atividade ilícita mais lucrativa do mundo, apenas perdendo para o narcotráfico, gerando um lucro estimado de mais de US$ 150 bilhões por ano.[10]


O perfil do acusado desse delito é de pessoa com idade avançada, pois trata-se de um indivíduo que levou anos para constituir o patrimônio, inclusive, constando com boa condição financeira, beneficiado por essa exploração no decorrer dos anos.[11] 


No Brasil a competência para processar e julgar esse crime é da Justiça Federal, existindo 5 Tribunais Regionais Federais (TRF), cada um abrangendo uma região distinta. O TRF da 1ª Região abrange os estados do Acre, Amazonas, Amapá, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso, Pará, Piauí, Rondônia, Roraima.


O TRF da 2ª Região abrange os estados do Espírito Santo e do Rio de Janeiro. O TRF da 3ª Região abrange os estados do Mato Grosso do Sul e São Paulo. O TRF da 4ª Região abrange os estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina e o TRF da 5ª Região abrange os estados de Alagoas, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe.


Nesse sentido, a problemática enfrentada nos dias de hoje é basicamente a divergência de interpretação dessas modalidades de trabalho escravo pelos juízes no Brasil, pois de acordo com análises de vários julgados, não há uma uniformização no entendimento do cometimento do crime, o que gera impunidade aos transgressores e, por fim, as vítimas ficam sem o respaldo legal necessário.


Na 1ª Região ao mesmo tempo que os magistrados decidem em acórdãos o não reconhecimento do trabalho análogo ao de escravo em que a vítima foi sujeita a condições degradantes, alegando serem insuficientes para caracterização do ilícito, em outros julgados pairaram pela condenação.


Já no TRF da 2ª Região, a 1ª e 2ª Turmas entendem que há o crime quando comprovar a “submissão dos trabalhadores à jornada exaustiva e a condições degradantes de trabalho, concomitante com a restrição da locomoção mediante o sistema de endividamento”.[12]


No TRF da 3ª Região notou-se uma construção jurisprudencial alternativa das condutas previstas do art. 149 do Código Penal, “sendo possível a ocorrência do crime em razão da coação moral, psicológica ou física exercida para impedir ou dificultar o desligamento do trabalhador das atividades laborativas”.[13]


No TRF da 4ª Região identificou-se o posicionamento em congruência ao adotado pelo STF, que pauta pela tutela da dignidade da pessoa humana e liberdade do trabalhador, de forma que as precárias condições sanitárias e dos alojamentos, assim como a falta de equipamentos de proteção individual foram suficientes para caracterizar o crime em tela.[14]


Por fim, o TRF da 5ª Região interpreta a caracterização do crime a partir do cerceamento da liberdade do trabalhador, embora em outros casos foram constatados trabalhos em condições degradantes, os magistrados não entenderam como a caracterização do Código Penal.[15]


No que tange ao entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), este “interpreta o crime de redução do trabalhador à condição análoga à de escravo a partir da dignidade da pessoa humana desde 2006, com o julgamento do RE nº 398.041-PA”.[16]


Nesse sentido, a principal objetividade jurídica do STF é a dignidade da pessoa humana e, em alguns julgados, reflete também na tutela da liberdade individual, direitos trabalhistas e direitos previdenciários.


A ocorrência desse crime viola a liberdade do indivíduo, sobretudo sua dignidade, uma vez que a vítima é tratada como objeto, não possuindo emoções e sentimentos. Inclusive infringe os preceitos das legislações trabalhista e constitucional, que têm o dever de proteger o trabalhador, mas que são violados com atos clandestinos dos infratores, o que dificulta os métodos de fiscalização.


A jurisprudência do STF entende que não é necessário haver violência física para caracterizar o crime, bastando apenas a coisificação do trabalhador, bem como a frequente afronta aos direitos fundamentais, vulnerando a dignidade do ser humano.


O STF também entende que não precisa existir coação da liberdade de ir e vir, até mesmo cerceamento de liberdade em razão de dívida para sua configuração, uma vez que o cerceamento de liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não apenas físicos.


Para finalizar, apesar do STF reconhecer a proteção do trabalhador submetido a esse crime, isso é insuficiente para que haja progressos significativos, haja vista que os Tribunais Superiores se mostram disformes quanto a caracterização do crime. O que abre margem para a não punição dos transgressores, perpetuando a conduta ilícita e, refletindo diretamente no trabalhador e na sociedade que se encontram desamparados pelo próprio Poder Judiciário.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BORIN, A. L. A “nova” senzala é logo ali: ao lado da“Capital do agronegócio”lá nos fundos dos canaviais sertanezinos. Franca: [s.n.], 2011.

 

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito Penal: Parte Especial I. São Paulo: Saraiva, 2012.

 

CAMPOS, Marcelo Roberto; RAFAEL, Raquel das Neves. Apresentação de Artigo Científico no dia 14 de julho de 2017 no Evento Trabalho Escravo Contemporâneo: Desafios e Perspectivas. Falso Universalismo dos Direitos Humanos Relacionado as Formas Contemporâneas de Trabalho Análogo ao Escravo. Belo Horizonte, 2017.

 

FREITAS, Luiza Cristina de Albuquerque; MESQUITA, Valena Jacob Chaves. Trabalho em Condições Análogas ao de Escravo: Divergências Jurisprudenciais e a Omissão do STF no Reconhecimento da Repercussão Geral do Tema. Revista Brasileira de Direitos e Garantias Fundamentais. v. 2, n. 2, 2016. Disponível em: <http://www.indexlaw.org/index.php/garantiasfundamentais/article/view/1627>.

 

________. Trabalho em Condições Análogas ao de Escravo: O Reconhecimento Jurisprudencial do Conceito Fundamentado na Tutela da Dignidade. XXV Encontro Nacional do Conpedi - Brasília/DF. Direito do Trabalho e Meio Ambiente do Trabalho II. 2016.

 

HADDAD, Carlos Henrique Borlido. A Vertente Criminal do Enfrentamento ao Trabalho Escravo Contemporâneo. In: Combate ao Trabalho Escravo: Conquistas, Estratégias e Desafios. São Paulo: LTr, 2017.

 

LIBBY, Douglas Cole; PAIVA, Eduardo França. A Escravidão no Brasil. Relações Sociais, Acordos e Conflitos. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2010.

 

PIOVESAN, Flávia. Combate ao Trabalho Escravo: Impacto da Sentença Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde. In: Trabalho Escravo – Condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Fazenda Brasil Verde. Brasília: Conatrae, 2017.

 

TREVISAN, Elisaide. Trabalho Escravo no Brasil Contemporâneo: Entre as Presas da Clandestinidade e as Garras da Exclusão. Curitiba: Juruá, 2015.


[1] LIBBY; PAIVA, 2010, p. 13.

[2] LIBBY; PAIVA, 2010, p. 16-18.

[3] BORIN, 2011, p. 42.

[4] TREVISAN, 2015, p. 68.

[5] FREITAS; MESQUITA, 2016.

[6] CABETTE, 2012, p. 112.

[7] FREITAS; MESQUITA, 2016.

[8] CAMPOS; RAFAEL, 2017.

[9] CABETTE, 2012, p. 112-113.

[10] PIOVESAN. 2017, p. 39.

[11] HADDAD, 2017, p. 138.

[12] FREITAS; MESQUITA, 2016, p. 11.

[13] FREITAS; MESQUITA, 2016, p. 11.

[14] FREITAS; MESQUITA, 2016, p. 11.

[15] FREITAS; MESQUITA, 2016, p. 11.

[16] FREITAS; MESQUITA, 2016.


 


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